Máquina de Pinball

Terto
3 min readJul 14, 2020

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Em muitas noites das últimas semanas uma coisa terrível e bonita acontece no meu cérebro.
Um pedaço do emaranhado neural que forma a minha consciência se desentende com meu corpo, acha que eu estou em perigo e tenta me proteger. A ansiedade que provoca me faz mal, ainda assim passei com o tempo a notar o quão árduo é seu trabalho dedicado.

Meu corpo cansado começa a entrar no modo repouso e no primeiro sinal de dormência, esse bravo sentinela acha que algo está errado e que eu preciso escapar. Para que sua mensagem seja bem clara ele aciona o modo coração máquina de pinball. Plec, plec, plim, o peito ricocheteia um tanto e a primeira puxada de ar parece com defeito. Isso é o suficiente para que o departamento de desastres abra a escotilha e pensamentos de morte surjam do deserto da sonolência como naquela cena de Mad Max, brutos, doidos, entre trovões.

Em outra camada eu consigo observar isso e a princípio sinto raiva e fragilidade, digo que é injusto ele fazer isso comigo, me sinto estúpido também por ter essa falha idiota. Meu corpo recebe os sinais e algumas partes são convencidas e despertam, outras não e tentam dormir, é aí que vem o medo de estar perdendo o controle. Sinto que preciso intermediar essa desavença e decido: ou todo mundo dorme ou todo mundo acorda. Levanto, busco água e a visão da janela. A diligência de autoproteção não se dá por satisfeita. Tudo o que ela está fazendo e que está me causando muito mal é tentando me defender como uma fera protegendo o filhote. É bonito e ao mesmo tempo triste.

Ela tenta me proteger de batidas policiais invisíveis que esganariam meu pescoço. Me proteger de um vírus que entraria no meu corpo pelo sonho. Me proteger de alguém que quer me bater na saída da escola, em 1997. Essa fase é a da justificativa. O trabalho desesperado agora é cavucar na minha memória formas de escapar, porque deve ter alguma coisa ali e no meio do processo eu começo a lembrar de coisas aleatórias. Receitas, cheiros, letras de música, as três coisas ao mesmo tempo sobrepostas. Traço por traço o rosto de gente importante e desimportante pra mim e gente imaginária. Imagens sexuais, de guerra, praias, frases interrompidas no meio por lembranças de texturas, como se em algum lugar dentro disso existisse a comprovação do mal que devo resistir. Do embaralhamento vez ou outra surgem ideias, textos inteiros como um que começa com Em muitas noites das últimas semanas uma coisa terrível e bonita acontece no meu cérebro.

Às vezes tudo é esquecido no dia seguinte. A sensação de ter toda essa informação, todos os livros lidos, conversas feitas, experiências vividas e nada disso impedir o descontrole é como correr da chuva e perceber que a roupa já está encharcada. Aí você desiste e se deixa levar, se deixa tomar pela sensação física do peso da chuva. Então eu deixo a sentinela trabalhar, fazer seu serviço, checar mil vezes se o perigo já passou. Respiro e solto, como se criasse vento calmo na savana até a fera começar a bocejar.

Às vezes isso acaba em uma sessão só de algumas horas. Às vezes vai e volta ao longo da noite toda. Às vezes depois disso eu durmo, mas antes de dormir eu agradeço a preocupação, agradeço a sentinela na minha cabeça por tentar cuidar de mim, é angustiante o que acontece a partir disso, mas eu entendo, é parte de mim e não posso me expulsar da minha própria casa. Foi algo que eu aprendi ao longo dos anos com esse tipo de condição. E depois eu penso em como é assombroso estar vivo e ter um cérebro onde acontecem todas essas coisas e ter um corpo onde acontecem todas essas coisas. Quando a gente finalmente se entende, meu coração se estica e dorme do lado certo.

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Terto

Autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017), e de "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019).