Entrei no ônibus com 32 anos

Terto
2 min readMay 10, 2017

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e sentei ao lado da moça que devia ter uns 19. Ela mexia no seu celular e, como rege as leis do transporte público, fui curiar de canto de olho.

Mal eu consegui assentar um primeiro pensamento e a ela já tinha, acreditem, como se fosse nada, deixado de seguir ou excluído três pessoas.

Nessa hora, os primeiros tufos de cabelos brancos começaram a aparecer na minha cabeça.

Logo menos notei a naturalidade com que ela fazia a curadoria do que queria ou não ver em seu feed. Seja foto, link, post chato, qualquer coisa que desagradasse, sequer franzia a testa, se desfazia daquilo de forma totalmente indolor.

Minhas primeiras rugas profundas começaram a suar. “O que esses jovens estão pensando que não estão compartilhando do nosso preciosismo sobre a timeline, cadê a culpa? Cadê o fricote?” resmunguei, sentindo a pneumonia avançar e a calvície vencer.

E lá se foram mais uns vinte abatidos.
A Osteoporose começou a me castigar quando percebi que na mesma velocidade que ela excluía, adiciona novas pessoas com a maior tranquilidade. E se vi alguma hesitação foi porque, em alguns casos, ela entrou em perfis masculinos avaliando se estes eram bonitos o suficiente para merecerem uma margem de tolerância.

Gases e incontinência urinária me constrangeram quando ficou claro que a garota sequer se deu o trabalho de fazer um post avisando a todos de sua faxina nos contatos, da mesma forma que ninguém avisa publicamente que limpou a bunda — era apenas um fato cotidiano e totalmente comum.

Com as poucas forças que me restavam, eu desbloqueei a tela do meu celular e deixei meus olhos agora quase tomados pela catarata me guiarem por todos os comentários de ódio, todas as discussões inúteis, toda a ansiedade, confusão e toda toxicidade política com que eu interajo todos os dias.

Rolei meu corpo decrépito para fora do ônibus e em estado de Delirium ainda tive um último pensamento: essa juventude não sabe de nada do que é bom.

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Terto

Autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017), e de "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019).