Entre Cortes e Corpos: A Mulher da Casa Abandonada, O Caso Evandro e Praia dos Ossos.

Terto
8 min readJul 22, 2022

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Foram muitas as questões surgidas a partir do podcast A Mulher da Casa Abandonada (Folha), especialmente em relação ao seu último episódio. Neste texto, tentarei levantar alguns pontos que me chamaram especial atenção, inclusive por ser um profissional da área, produtor, roteirista e editor de podcasts, muitos narrativos, alguns de jornalismo investigativo, além de ser escritor. Talvez seja relevante também o fato de que, como eu, minha mãe é negra e sempre trabalhou de empregada doméstica. Ah, curiosamente, ela se chama Margarida, mesmo nome da personagem retratada por Chico Felitti no programa. Também considerei relevante para algumas reflexões abordar comparativamente, em certos aspectos, outros dois fenômenos do formato: O Caso Evandro, de Ivan Mizanzuk, e Praia dos Ossos, de Branca Viana, produzido pela Rádio Novelo.

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cover art de alguns podcasts de True Crime

Drama x Jornalismo

Podcasts de crime são os maiores fenômenos do formato, ao lado dos mesacasts de vídeo estilo Joe Rogan. Apelidados de True Crime, mergulham em algum caso que captura a audiência seja por sua bizarrice, seu mistério, sua surpresa e, muitas vezes, também por sua violência. Na prática, misturam técnicas e elementos narrativos de gêneros como a literatura policial, o documentário, o thriller de suspense e até a novela ou ofolhetim. A estrutura de roteiro, com certas variações, atende basicamente ao mesmo modelo: o narrador personagem, geralmente um repórter/investigador, descobre ao acaso a pista para uma história. Essa história revela um crime e o repórter atravessa um labirinto de dificuldades para tentar desvendar o máximo de aspectos possíveis sobre esse crime a fim de compreender sua natureza, ou levantar novas perspectivas sobre ele, ou conhecer seus desdobramentos.

Tudo isso é feito dessa forma porque dramaticamente atinge seu propósito: prender a atenção e provocar emoções (ou efeitos, no sentido de afetar a audiência). Podcasts assim geralmente trabalham mais descrição de cena — em lugar acontece alguma coisa com alguém — do que com sumários, descrição direta da apuração e em pouca coisa se distancia de técnicas utilizadas na ficção.

O jornalismo, por sua vez, tem outro aparato para trabalhar suas histórias que podem ou não serem complementares às narrativas que utilizam dramaticidade. Essa equação nunca foi simples e precisa ser balanceada através de contextos socioculturais.

Corpos e vítimas

Ângela Diniz/ Crédito: Antônio Guerreiro — Editora Abril

As três produções, ao partirem da investigação de um crime e seus significados, precisam lidar com a questão da descrição de violência e de corpos vitimizados. Em O Caso Evandro, o corpo de uma criança, cujo próprio estado é fundamental para toda a apuração, e Praia dos Ossos, no qual o corpo não aparece somente a partir da violência, mas de seu significado social, uma vez que Ângela Diniz teve sua reputação atacada por ser uma mulher que se destacava em uma sociedade muito machista. Há outras vítimas em O Caso Evandro, as pessoas presas injustamente, que inclusive foram torturadas. Ivan descreve detalhes da tortura somente para confrontar contradições do inquérito e, ao descrever o corpo de Evandro e outras crianças, avisa previamente sobre o teor perturbador do que vem a seguir. Em Praia dos Ossos, a representação de Ângela Diniz é tão magnética quanto a própria parecia ser em vida: sua descrição é rica, vibrante e complexa, mostrando que por trás da “mulher fatal” representada pela mídia, havia uma mulher que enfrentava diversas questões e que tinha suas contradições. Em A Mulher da Casa Abandonada, a situação é distinta, pois nele a vítima ainda está viva e declarou não querer mais tocar no assunto. Sua presença direta é uma voz distante em uma ligação rápida. Ao tomar a decisão, compreensível, de não identificá-la, mas precisar descrever a violência que sofreu, o programa se vê criando uma vítima que é tão somente um corpo com marcas. Existe algo ainda mais complicado: quem são essas vítimas, que corpos são esses?

O menino Evandro Ramos Caetano

Evandro era pobre, mas uma criança descrita como “anjinho”, Ângela Diniz era mulher, mas era branca, rica e influente. A vítima em A Mulher da Casa Abandonada era pobre, mulher e preta. Há muitos teóricos que falam sobre a questão do corpo negro em um mundo racista - recomendo a obra Afropessimismo, de Frank Wilderson III (pude produzir uma conversa entre ele e o sociólogo Túlio Custódio). O corpo negro não é um corpo qualquer, é um corpo que onde quer que você o represente, é necessário refletir muito seriamente sobre como estará representado, uma vez entendido que o racismo transforma o sofrimento no corpo em uma espécie de recreação / realização. Soma-se a isso o fato de que, em A Mulher da Casa Abandonada, o crime em si é o de escravidão, portanto um duplo trauma e a vítima, sem nome, é tão somente uma função: “a empregada”. Toda essa questão deveria ser levada em consideração em decisões estéticas e narrativas. Percebam que eu não estou falando de gatilhos, porque, em minha opinião pessoal, entendo perfeitamente quem utiliza esse argumento e nem é algo agradável de constatar, mas nenhuma produção tem que levar em consideração se determinada cena ativa os chamados “gatilhos”, é responsabilidade de cada pessoa escolher acessar ou não conteúdos. Ainda que seus traumas partam de uma questão social, acho gatilho um argumento válido, mas fraco num aspecto mais amplo. O que me interessa de fato é a forma de representação desse corpo e sua subjetividade.

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Ética x alcance

O jornalismo precisa, sim, em sua boa prática, ter o chamado “outro lado”, mas é preciso pensar que destaque se dá a ele e em qual momento de sua história se coloca esse “outro lado”. Há uma lição básica de roteiro, descrita de formas diferentes mas que chega mais ou menos nisso: o que vai pro texto deve fazer a história andar. A história pode, entretanto, andar em dois sentidos: horizontal (desenvolvimento) ou vertical (aprofundamento), não importando se a estrutura da história é circular, fragmentada ou linear. Esse é o ponto de vista do drama. Do ponto de vista jornalístico, ética, relevância e interesse público norteiam o espaço dado a esse “outro lado”. Em minha avaliação, os dois componentes, dramático e jornalístico, entraram em crise diante das questões apresentadas pela história, inclusive o fato de termos um espaço, uma mansão abandonada em um bairro nobre, como personagem. Eu trabalhei em Higienópolis na minha época de operador de telemarketing, bem na época em que os moradores se juntaram contra a construção de um metrô que ajudaria pessoas como eu. Eu era a “gente estranha” que eles não queriam que passasse a circular pelo bairro, então sim, o lugar é importante para compor essa história. Contudo, existem implicações. Quando você dá um “lugar” como símbolo de um crime, você corre o risco de gerar o fenômeno “turismo macabro”. Além disso, um endereço é também um ponto de encontro, um lugar onde pessoas que se veem no desejo de “participar do fenômeno” podem se reunir para produzir conteúdo e “participar da experiência”. A Mulher da Casa Abandonada é um sucesso inegável de público também porque o podcast penetrou na cultura Tik Tok e na cultura de True Crime, com centenas de canais, grupos e conteúdos produzidos a partir de crimes e, aliado a isso, as suas decisões de dramaticidade. A produção, no interesse de alcançar um grande público, tomou decisões justificáveis, mas nisso se colocou diante de dilemas complexos. O último episódio, uma entrevista com Margarida Bonetti. Ela ,que é A Mulher do título do podcast, ela, que é concebida como um ser carismático (personagens carismáticos não são bons, são apenas aqueles em que a narrativa “gruda”), é a entrega final do arco. Mais uma vez, essa estrutura é muito comum em True Crime: no episódio final, uma entrevista com o assassino ou uma vítima que decide falar, uma revelação ou um gancho para uma nova temporada. Optaram pela entrevista pois sabiam que o público em geral queria ver o confronto entre o narrador investigador e a mulher, mas será mesmo que um hora inteira de espaço é a melhor decisão, seja para ouvir “o outro lado”, seja para contrapor um problema que eles mesmos identificaram durante o programa: o de que a história passasse a ser sobre a mulher e não sobre seu crime. Além disso, há ainda a inacreditável publi de filme de terror que atravessa o programa. Essa mulher é apresentada como uma personagem excêntrica com ares fantasiosos, uma vilã da Disney, mas a violência que praticou não é mística ou mágica, é real, assustadoramente comum e poderia ser esvaziada em prol de um caminho dramático, a mulher não é uma racista da elite escravocrata, é a bruxa que vive no casarão, que aparece pelas janelas, que liga em horários estranhos, que tem um nome falso, que usa uma pomada na cara etc. Essa mulher, mais que excêntrica, precisa ser real, porque se ela não for real, o crime que ela cometeu também não é.

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Pensamentos finais:

É possível entender que, ao tratar de certos temas, cortes e montagem não são só decisões estéticas, mas políticas.

Talvez seja necessário entendermos esses fenômenos e o que eles dizem para além dos ruídos de quando acontece um evento catártico como a transmissão pelo Datena ao vivo e a tentativa de invasão e o “resgate” do cachorro pela influencer Luisa Mell. Cada sucesso estabelece um novo critério de produção na área. Agora, imagino que muitos veículos irão procurar o seu A Mulher da Casa Abandonada e é preciso entender que dilemas se apresentarão no seu trabalho:

> Com quem queremos falar, e de que forma?

> Quais camadas dessa história eu posso conduzir de maneira ética?

> Qual o contexto social, inclusive em termos de mídia, no momento em que irei tocar nesse assunto?

> Existe na minha equipe de produção a possibilidade de leitura crítica que tensione não só as questões estéticas narrativas, mas os aspectos sociais do meu arco?

Chico Felitti é um contador de histórias experiente que sabe muito bem farejar casos com particularidades que despertam interesse e provocam emoções, vide a famosa reportagem sobre Ricardo, pejorativamente chamado de Fofão da Augusta, ou a biografia que escreveu sobre Elke Maravilha. Não boto na conta do programa os eventos que se sucederam, mas acho que não dá para excluir totalmente sua responsabilidade. É importante olhar as críticas não pelas lentes ressentidas que às vezes surgem como “olha lá os canceladores”, “esse povo critica tudo” ou “tá, então como você faria?”

Meu último recado é sobre o público e aqui falo como produtor que já trabalhou com temas sensíveis, como pessoas presas injustamente. Vocês escutariam um podcast sobre mulheres que foram escravizadas, que trouxesse uma abordagem mais “sóbria”, simplesmente porque isso é um tema importante? Vocês estão preparados para confrontar verdadeiramente os temas indigestos que estruturam a nossa sociedade ou vocês só conseguem se interessar pelo o que consegue se disfarçar de entretenimento? Produtores brancos, vocês têm pessoas pretas no seu grupo de trabalho e, mais do que isso, elas têm voz? Vocês conseguem encarar o desafio de trabalhar questões sociais de uma forma interessante sem esvaziar seu sentido? O que produtores não brancos têm a dizer sobre o Brasil, sobre o corpo da mulher, sobre o corpo negro? Sobre a violência, sobre feminicídio, sobre a justiça?

Essas perguntas precisam ser respondidas ainda nesse capítulo.

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Recriação da casa abandonada e Margarida no jogo The Sims 4

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Terto

Autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017), e de "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019).