Eles Ainda Não Sabem

Terto
4 min readJul 3, 2019

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Curioso pensar que ninguém nasce desempregado. Você não olha para uma criança limpando ranho na manga da blusa e pensa “alá uma criança desempregada”. Mas um belo dia você pode acordar com essa definição após a vírgula do seu nome.

Pessoa, desempregada.

Eu já fiz muita coisa e comecei a trabalhar muito cedo, tão cedo que entre os primeiros empregos eu não descobri a condição de desempregado. Chegava em casa e contava
“Fui demitido”
“Por quê?”
“O moço falou que eu cortava tomates tudo errado” (pizzaria, 2 meses, 14 anos, *expulso da igreja depois de xingar seu chefe que espalhou que ele roubava o troco da pizzaria)

“Fui demitido”
“Por quê?”
“O moço falou que eu num sabia entregar as revistas” (revendedor Abril, 2 semanas, 15 anos *expulso da cidade de Suzano por jogar revistas velhas para o alto em frente a um Banco do Brasil)

“Fui demitido”
“Por quê?”
“O moço falou que eu quebrava todos os galões de água” (entregador de água, 1 mês e 4 dias, 16 anos *expulso do dentista por derrubar o galão de água sem querer e molhar todo o consultório)

Depois que fui demitido do comércio de águas do Sr. Toshio eu recebi pela primeira vez o selo de desempregado e fui eu mesmo que me dei “agora tô desempregado”. Esse momento de autodescoberta aconteceu diante de uma unidade da SOS cursos profissionalizantes. O sr. já trabalha? Agora tô desempregado, respondi. Pois saiba que em breve será requisito de qualquer empresa saber computação (informática em até 6x, sabia como enviar e-mails, acessar a internet, digitação e muito mais), etc. Enfim, não fiz o curso mas fiquei ali com aquela descoberta, desempregado, sem curso de informática, que droga, como que fazem galões tão pesados?

Enviei meus primeiros currículos, naquela época assim chamados de Curriculum Vitae. Nome, idade, escolaridade (ensino médio incompleto). Tem que terminar os estudos pra conseguir arrumar emprego, dizia minha mãe e naquela época, naquela canto ali, todo mundo entendia que fim do ensino médio era terminar os estudos.

Depois de terminados, até então, os estudos, consegui o primeiro registro em carteira (ajudante geral em laboratório de esterilização, 2 anos de registro, madrugada, uma folga por mês). Saí de lá munido de rescisão, seguro desemprego, cartão atrasado da C&A e Lojas Pernambucanas.

Depois que torrei o dinheiro num investimento que só posso chamar de “tentativa de montar um bar gótico periférico enquanto roubávamos a luz do puteiro do outro lado da rua”, eu tava lá, desempregado, dessa vez já sabendo baixar safadeza e música no computador acabei indo parar no telemarketing (ao todo foram 8 anos, comecei na cobrança receptiva para o UOL, terminei na Prefeitura de SP, produto Copa do Mundo de 2014, no atendimento bilíngue que durou até o 7x1 com o total de 2 atendimentos realizados).

Depois fui envelopar exame médico na CDC e larguei isso para vender livro da Livraria da Vila. Nessa altura da vida eu já tinha trabalhado até em depósito de reciclagem de metal, num galpão todo empoeirado, chegando em casa com as mãos em carne viva e mesmo assim foi como livreiro que pela primeira vez saí chorando depois de ser demitido.

Mais uma vez me disseram que o galão era pesado demais pra mim. Eu tava exausto. Eu tinha trabalhado finais de semana, esperando até o último cliente do domingo decidir qual a melhor tradução de russo que ele gostaria de levar, me sentindo francamente burro o tempo todo e eu nem sei como me tornei escritor. Quando você é demitido no terceiro mês, no dia seguinte você tem que procurar emprego de novo. E foi esse meu grande aprofundamento no conceito do desempregado real e oficial.

O desempregado que abre o Infojobs e depois de duas semanas sem nenhuma resposta para as dezenas de vagas começa a apelar para qualquer coisa que não tem nada a ver com sua formação ou experiência.

O desempregado que escreve “tenho força de vontade” na autoapresentação como quem diz, porra, vocês não têm a menor ideia do que eu sei fazer. E depois lê um especialista dizendo que é legal usar as palavras “bom relacionamento interpessoal”.

O desempregado que diz “pego duas conduções pra vir, mas dou um jeito de vir só com uma”, o que é uma mentira, mas que se dane, eu tiro do bolso, começo com alguma coisa e depois vou me ajeitando.

O desempregado que acorda 4h da manhã pra ir no CAT e aí começa a calcular qual é o mais vazio e em qual dia, saindo de lá com uma guia de entrevista pra um lugar que você nem precisa apertar o interfone porque a fila começa quase no ponto de ônibus. E é a mesma roupa social todo dia. E é o bolinho das 6h da saída do metrô anhangabaú. E é enfiar a cabeça no meio das pessoas cercando o tiozinho que usa uma placa com as vagas. O galão pesando um milhão de toneladas.

E aí, como acontece muitas vezes, o amigo do irmão do primo do genro de alguém diz que tá sabendo que uma loja de shopping tal vai contratar gente para o Natal “com possibilidade de efetivação”.

Uma fase, duas fases, três fases, exame médico, tá apto.

Amigo, a gente só descobre depois disso que não tava mais respirando.

E quando o chefe diz, para quem não quiser vestir a camisa, que precisa repensar porque “lá fora não tá fácil pra ninguém”, já era, você entendeu tudo. Fica na miúda, sorri aqui e ali e começa aos poucos apagando o selo depois da vírgula do nome. Há chances de efetivação, respira. E negocia com o banco e passa as compras no vale e dorme com a cara no vidro do metrô. E com o tempo, com os dias se espremendo entre as semanas, que se espremem entre os anos e as férias negociadas, você finalmente se esquece que ninguém nasce desempregado e que eles ainda não sabem o que você pode fazer.

Eles ainda não sabem.

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Terto

Autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017), e de "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019).