30 de outubro de 2022.

Terto
4 min readOct 31, 2022

Acho que muitos sentimentos se encontraram e foram reencontrados ontem em muitos grupos pelo Brasil.

Alívio foi um dos que mais ouvi e li. Imagine o alívio do funcionalismo público em áreas que passaram quatro anos sendo perseguidas, imagine o alívio de trabalhadores do Ibama, da Ciência, das Universidades Federais e da área da Cultura. Imagina o alívio de que está como diretamente como alvo e que mesmo as condições estruturais do país não sendo revertidas do dia pra noite, ainda assim, que alívio poder gritar que o projeto que queria te exterminar perdeu. Que alívio ouvir um discurso compreensível, sensível e humano. Ontem até o Bonner parecia sinceramente aliviado.

Você não precisa ser fã do Lula para notar a diferença entre os discursos de vitória de Bolsonaro em 2018, como o de Lula em 2022. Um prometeu a ponta da praia, o fim do comunismo, disse que a minoria deveria se curvar à maioria, prometeu armas e o fim dos ativismos no Brasil. Lula disse que é hora de pacificar o país, que irá governar para todos, falou sobre problemas reais da vida das pessoas como a preocupação com salário e moradia e falou sobre combate à fome, aliás, Lula fez um discurso de estadista que ecoará pelo mundo, mas a gente percebe sem nenhuma dúvida que a fala em que carrega uma paixão, uma vocação, é quando ele diz sobre o combate à fome. Combate à fome e não aos ativismos, isso é uma diferença abismal.

O governo Lula já começará paradoxal, otimista, mas com imensos desafios. Imagino que é o cenário mais difícil que um presidente assumiu o país desde a redemocratização. Bolsonaro provavelmente castigará o povo para deixar o país, o mais inviável possível a partir de 2023. A bomba orçamentária já está na mesa. A oposição virá tanto da ala Moro, MBL e outras frentes que disputaram o poder e se separaram em certo ponto e que agora irão se reagrupar, quanto de Ciristas e até de uma parte da esquerda a partir de certo ponto, quando o caráter de coalisão mais do que explicitado dessa frente for colocada a partir de determinadas concessões.

Porém, esse desafio está à altura de um dos maiores líderes políticos do mundo, um sujeito que nós vimos ser preso em uma apoteose midiática e que foi declarado extinto politicamente e que agora venceu a maior máquina eleitoral já vista no Brasil, contra um número incontável de mentiras, com pastores coagido fiéis, empresários coagindo funcionários, contra parte da imprensa relativizando a violência política que tomou as ruas, contra um esquema oficializado de compra de votos, contra diversas ilegalidades e crimes eleitorais como por exemplo, tornar o feriado da independência um palanque e por aí vai, contra tudo isso foi que se precisou montar a maior frente ampla que esse país já viu, colocando lado a lado personalidades que jamais imaginaríamos.

Só Lula teria o estofo político para conseguir criar essa frente e para além disso, enfrentar um Brasil quebrado em muitos níveis.

Bolsonaro, aquele que se congratulou como imbroxável, foi visto ontem à noite apenas na penumbra. Seu vulto silencioso na escuridão, incapaz de agradecer sequer aos 58 milhões de votos que obteve, pode ter simbolismos muito mais profundos sobre o seu futuro e o do grupo que ele viu crescer a seu redor.

Bolsonaro pela primeira em mais de 30 anos não terá um cargo político. O que ele é sem o poder nas mãos? Essa é uma pergunta que inclusive seus apoiadores devem estar se fazendo. Seu nome, hoje, ainda é muito forte, mas às custas de que e de quem? Para manter sua base unida Bolsonaro criava um fato por semana praticamente, e a partir de janeiro? Será que a imprensa declaratória vai continuar repercutindo cada fala sua? O que é Bolsonaro sem cercadinho, sem a caneta do orçamento? Sabemos quem é Lula sem cargo político, é um cara que continuou mobilizando sua base muito também por conta de que o Partido dos Trabalhadores é um partido de verdade no meio de um mar de legendas irrelevantes e de ocasião.

É de se pensar que meses antes de se tornar o centro do projeto da extrema direita do Brasil, Bolsonaro estava debatendo com Toninho do Diabo e Padre Quevedo em programa da Rede TV. Será mesmo que Tarcísio sentirá que deve alguma coisa a ele? E Lira? E os militares? Se eles conseguiram fabricar Bolsonaro podem muito bem tentar fabricar um novo nome. O que virá com o fim dos sigilos de 100 anos? Bolsonaro, mesmo que queira poderá andar livremente pelo país, ou vai se esconder no exterior? Sem poder, Bolsonaro pode pra eles simplesmente um problema complicado demais pra pouco retorno e por “eles” eu incluo aqui os militares. Muitos se alçaram ao poder ao seu redor e ironicamente, talvez depois de deixar tantos aliados pelo caminho, é ele quem seja deixado na escuridão.

Nem de longe estou sugerindo que o fascismo foi eliminado no Brasil, existem inúmeras figuras que estão dispostas inclusive a pegarem esse bastão. Grande parte desses 58 milhões de pessoas foram pegas por uma máquina de mentiras, mas tem sim um número expressivo de pessoas que nunca mais serão recuperadas do ódio. Não importa se o Brasil melhorar e for um país minimamente mais possível para as pessoas, eles continuarão com ódio. Por isso, toda e qualquer pessoa que tenha consciência política no Brasil deve entender que eleições são um processo importante e decisivo no equilíbrio de forças, mas a luta é uma prática constante. Ganhamos fôlego. É nosso dever internalizar a avaliação dada por Pepe Mujica e tantos outros de que quando a esquerda esteve no poder, criamos uma classe de consumidores, não de cidadãos.

Vivemos história mais uma vez. E todos que não puderam estar conosco agora, que estejam em nossa atuação, nosso afeto e nosso trabalho. Algo se respira no futuro do Brasil.

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Terto

Autor dos livros "Marmitas Frias" (crônicas, ed. Lamparina Luminosa, 2017), e de "Os Dias Antes de Nenhum" (contos, ed. Patuá, 2019).